2.1. Caracterização
da "teologia originante"
O
sujeito da teologia (evangelista ou autor de epístola), protagonista da
reflexão de fé, dirige-se a uma comunidade cristã concreta ou grupo de
comunidades. Enquanto anúncio, os escritos do Novo Testamento também se
destinam aos que estão fora da comunidade desde que predispostos a aderir ao grupo
dos seguidores de Jesus. Longe de ser reflexão acadêmica e especulativa,
expressam os resultados da experiência cristã fundante, pretendem suscitar e
alimentar a fé.
Conhecemos
os diferentes estilos desta reflexão: teologia narrativa dos
evangelhos e Atos, literatura
epistolar e apocalíptica. Em seu núcleo conjugam-se fato e interpretação, compreensão e anúncio sob notório influxo do judaísmo.
Lentamente, a comunidade de fé se,desprega
da religião
de Israel, mas esta permanece o ponto de referencia básica.
Sinteticamente, a teologia
fontal do Novo Testamento pode ser caracterizada como:
- Pneumática,
embebida pelo Espírito que suscita a continuidade dos seguidores de Jesus;
- Eclesial, nascida no seio
vivo de uma comunidade a caminho e referida a ela;
- Missionária: destinada a transmitir
e recriar a fé cristã;
- Vivencial: repleta de sentimentos, conotações afetivas e força
convocatória,
proveniente da experiência de seguimento do ressuscitado;
- Contextualizada
na
história da comunidade em que foi elaborada. Não retrata desejo explícito de
fazer reflexão única e universal válida igualmente para todos. Como
"anamnese da Palavra" torna presente o
dado revelado em diversas situações. Cria unidade como
solidariedade entre os diferentes;
-
Aberta ao futuro, estimulando assim interpretações enriquecedoras, novas releituras
situadas.
2.2. A teologia simbólica da patrística
A
teologia patrística abarca o período de seis séculos, compreendendo desde a geração imediatamente
posterior aos apóstolos até a dos que prepararam a teologia medieval.
O
princípio patrístico "Crer para entender, entender para crer" ilumina
este momento teológico. Recusa-se separar inteligência e fé, reflexão e
caridade vivida, conhecimento profano do mundo e conhecimento esperançado
à luz da revelação. Compreender e crer condicionam-se mutuamente. Os
padres veem a teologia como "anagogia", subida rumo ao mistério
divino.
"A
partir da Natureza, a partir da história ou da Escritura ou da Liturgia, do que
quer que fosse, a razão tendia, no mesmo impulso, rumo a inteligência
espiritual, sempre à luz do Verbo e sob a moção do Espírito (...) A inteligência
é assumida plenamente no dinamismo da fé, como inteligência crente, pela qual
Deus não é somente objeto de conhecimento, mas fonte e termo do amor, que abraça
toda a vida (...) Trata-se de teologia espiritual e ascendente, alimentada pela
experiência intensa do mistério proclamado, celebrado e vivido, exercitada na
leitura do texto sagrado e das realidades mundanas em perspectivas unitárias e
totalizantes".
Os
protagonistas da teologia patrística, bispos, sacerdotes e leigos, elaboram
reflexão de fé de cunho predominantemente pastoral. Grande parte dos
"Padres" são pastores em constante e fecundo contato com a experiência
litúrgica e espiritual da comunidade eclesial. O material, hoje disponível,
provém de diversas fontes: homilias, textos litúrgicos, comentários de textos
da Escritura, textos de catequese, obras de caráter polêmico, etc. Embora a maioria
dos escritos seja dirigida a comunidade cristã, alguns se voltam para a
"intelectualidade" da época. No início do sec. III, formam-se
"escolas teológicas". As mais conhecidas foram as de Antioquia e
Alexandria, rivais entre si. Enquanto a primeira tendia à exegese literal da
Escritura, na segunda predominava o sentido espiritual. A reflexão de fé dos
padres é marcadamente bíblica, litúrgica, crístico-eclesial, inculturada e
plural.
2.3.
Características da teologia escolástica
Obedecendo à dinâmica de sua experiência
interior, simultaneamente espiritual e intelectual, Tomás de
Aquino empreende duas operações de imenso alcance: a assimilacio
de Aristóteles e a recriacio dos elementos tradicionais da fé e
da cultura cristãs, a partir da herança bíblica, patrística e filosófica
(especialmente neoplatônica e aristotélica) que chegaram até ele.
Mantém a princípio o contato com a Escritura e a espiritualidade. O
alto grau de especulação intelectual não o distancia da experiência
mística e da prática da caridade. A escolástica tardia, infelizmente,
favoreceu este distanciamento.
A
escolástica elabora a teologia no interior de círculo cultural particular e homogêneo,
típico da cristandade. A conciliação entre a fé e a razão reflete-se no fato de
os intelectuais serem religiosos, pessoas de fé. Assim, a filosofia não serve
para buscar a verdade, mas para demonstra-la. A teologia escolástica medieval
contribui singularmente para o processo de interpretação da fé. Ao passar dos
símbolos e analogias para o conceito, imprime rigor teórico ao ato de pensar a
fé. Ao utilizar lógica estrita, servindo-se de método dedutivo e articulando
categorias abrangentes, ganha cidadania no âmbito do pensamento articulado pela
razão.
A
escolástica é tributária do ideal de saber e de ciência proveniente da
filosofia aristotélica. Compartilha de seus limites: "Forte conceitualismo,
racionalismo, essencialismo, metafisicismo, abstratismo, tendência ao
dedutivismo, a-historicismo". Por considerar objeto da ciência somente as
coisas necessárias e universais, exclui as necessárias e contingentes,
ignorando assim o lado concreto, histórico, experimental, pessoal e relativo do
ser. A matriz "ser-essência" que subjaz ao aristotelismo e à escolástica,
se articula em esquema dual, que produz nefastos dualismos na vida de fé e suas
expressões. A ênfase no momento científico-racional da fé favorece a separação
crescente da teologia com a espiritualidade, liturgia, Escritura e vida da
Igreja. A distinção conduz a dilaceração.
2.4. Características
da teologia na idade moderna
A
teologia hegemônica neste período caracteriza-se, antes de tudo, por sua submissão
ao magistério. Este ganha sempre mais poder na Igreja, ao mesmo tempo que é
fortemente questionado fora dela. A teologia arvora-se em grande arma do
magistério para combater as heresias e eliminar o dissenso no interior da
Igreja. Especializa-se nas tarefas de expor, definir, defender, provar e
confirmar a fé ortodoxa examinar e condenar os erros. Deixa sua função de
pesquisa para se tornar exposição autoritativa da
doutrina. Sentem-se menos responsáveis pela intelecção cristã do que pela
definição doutrinal e rigor da ortodoxia.
O
primeiro destinatário da teologia passa a ser quase exclusivamente o clérigo,
religioso ou diocesano. Com a regulamentação dos seminários, após o Concílio de
Trento, a teologia torna-se curso obrigatório para a formação sacerdotal, de
modo que os teólogos, praticamente todos do clero, elaboram um saber em vista
da formação dos futuros sacerdotes. A teologia se desenvolve sobretudo em três
grandes áreas: fundamental, dogmática e moral. Na fundamental, prevalece a apologética,
cujas demonstrações não visam suscitar a fé, mas sim mostrar a credibilidade do
testemunho dado a revelação por Jesus Cristo e sua Igreja. A moral se estrutura sobretudo a partir da lei
(divina, natural e positiva) e dos dez mandamentos.
Os
manuais de teologia dogmática, por sua vez, seguem o método regressivo. Partem
de uma tese, remetendo-a ao ensinamento atual do magistério eclesiástico. Tratam de prová-la, ao mostrar como este ensinamento
está expresso originalmente na Escritura, em perfeita continuidade, presente
nas expressões de fé católica patrística e medieval. Para enfrentar o racionalismo moderno, a teologia assume cada
vez
mais certo rigor científico no âmbito da
concepção aristotélico-tomista de ciência.
A clareza conceitual associa-se a certo "objetivismo" nas verdades de fé. Cresce assim o abismo em relação à
espiritualidade.
O discurso teológico trabalha somente a
dimensão cognitiva da fé, relegando a segundo plano seu aspecto existencial e
celebrativo. A teologia, ministrada preferentemente nos seminários, isola-se
das questões cotidianas do mundo secular. Imune de seu contágio, privada de
suas perguntas fertilizadoras, ela não consegue descobrir os
sinais de Deus fora dos muros da Igreja. A uniformização da teologia, a partir das
instancias centralizadoras, cria a ilusão de que existe uma "teologia
universal", elaborada nos frios e precisos laboratórios romanos.
2.5. A teologia em mudança na contemporaneidade
Ao
defrontarmo-nos com um quadro tão cinzento, perguntamos como foi possível então
a mudança da teologia, cujo marco inequívoco foi o Concilio Vaticano II?
Grande
criatividade marca os 20 anos que antecederam o Concílio. A semente foi
plantada, cultivada e produziu muitos frutos para a Igreja, principalmente no
que se refere ao diálogo com o mundo contemporâneo.
2.6. A teologia da libertação na América Latina
A
TdL diferencia-se das outras teologias. Não porque não se refira a Revelação.
Nisso todas as teologias se igualam. Mas porque essa referencia se faz a partir
de uma situação nova, diferente: a de nosso continente cristão, sob a tensão da
dominação e da libertação.
I. Pontos de
partida
Toda
nova teologia nasce de novas perguntas, de dentro de um contexto sociocultural
novo. Mas, antes de tudo, nasce de uma experiência de Deus que a alimenta em
toda trajetória teórica. Uma teologia não se reduz a simples atividade
intelectual individual. A TdL lança suas raízes no solo experiencial e eclesial
da presença de Deus no pobre, no explorado e em sua luta pela libertação. Deus não
se silencia totalmente na face machucada do pobre, mas manifesta-se operoso na
ação fraterna de libertação. Par isso, a TdL arranca sobretudo da vivência do
povo oprimido, dominado, empobrecido, que toma consciência de sua situação de miséria
e se organiza para realizar o projeto de Deus sobre a humanidade: viver em
fraternidade, em justiça, em dignidade.
O
esquecimento dessa experiência-fonte
da TdL pode levar seja a confundí-la com determinada
prática libertadora - redução política - seja a descolá-la dessa experiência
concreta e transformá-la em bandeira ideológica de
alguma causa. A TdL renova-se e purifica-se continuamente ao voltar-se à
experiência-base da presença de Deus no pobre e em sua luta. Se se desliga
dela, assume o papel de pura ideologia; se não se identifica com determinada
prática concreta, converte-se em puro empirismo, ativismo, pragmatismo. A TdL é
a face teórico-crítica da prática da caridade libertadora. Sem ela, a prática
perde lucidez. Sem a prática da caridade ela se esvazia. Soa como pura palavra
sem força, sem consistência.
II. Teologia da libertação e práxis
Resumindo
de modo didático, a TdL é uma:
a. Teologia da práxis:
pois
esta teologia haure seu material de reflexão da prática intrateológica, ou
intraeclesial ou sociopolítica. A prática oferece a matéria-prima da TdL.
b. Teologia para
a práxis: o
produto teológico, o fruto da elaboração teológica - confronto do material
assumido da prática com a Revelação - se orienta a iluminar a pratica teológica
intraeclesial ou sociopolítica. Devolve-se à prática do fiel ou do cidadão o
material assumido da pratica depois de ter sido trabalhado sob o angulo
especificamente teológico, isto é, à luz da Revelação.
c. Teologia na práxis:
o
teólogo que faz a reflexão deve, de certo modo, estar articulado com a prática
que reflete e para a qual reflete. Supõe-se dele uma opção de compromisso com a
prática libertadora dos pobres. Opção que deve ultrapassar simplesmente o
interior do coração para concretizar-se num mínimo de prática concreta de
libertação junto aos pobres.
d. Teologia pela práxis:
uma vez terminada a
tarefa teológica de ter interpretado à luz da revelação as práticas pastorais e
sociais e ter devolvido o produto teológico aos interessados, estes submetem-no
a sua crítica. A prática deles julga se a tarefa teológica foi bem executada ou
não. Se a teologia ajuda o processo de libertação dos pobres em seu verdadeiro sentido
concreto e a manutenção dos valores ela é boa teologia. Claro que esta não deve
ser entendida unicamente como eficiência prática, mas também, e de modo
especial, como conservação da fé nessa prática.