domingo, 9 de março de 2014

2. Breve história da teologia

2.1. Caracterização da "teologia originante"
O sujeito da teologia (evangelista ou autor de epístola), protagonista da reflexão de fé, dirige-se a uma comunidade cristã concreta ou grupo de comunidades. Enquanto anúncio, os escritos do Novo Testamento também se destinam aos que estão fora da comunidade desde que predispostos a aderir ao grupo dos seguidores de Jesus. Longe de ser reflexão acadêmica e especulativa, expressam os resultados da experiência cristã fundante, pretendem suscitar e alimentar a fé.
Conhecemos os diferentes estilos desta reflexão: teologia narrativa dos evangelhos e Atos, literatura epistolar e apocalíptica. Em seu núcleo conjugam-se fato e interpretação, compreensão e anúncio sob notório influxo do judaísmo. Lentamente, a comunidade de fé se,desprega da religião de Israel, mas esta permanece o ponto de referencia básica.
Sinteticamente, a teologia fontal do Novo Testamento pode ser caracterizada como:
- Pneumática, embebida pelo Espírito que suscita a continuidade dos seguidores de Jesus;
- Eclesial, nascida no seio vivo de uma comunidade a caminho e referida a ela;
- Missionária: destinada a transmitir e recriar a fé cristã;
- Vivencial: repleta de sentimentos, conotações afetivas e força convocatória, proveniente da experiência de seguimento do ressuscitado;
- Contextualizada na história da comunidade em que foi elaborada. Não retrata desejo explícito de fazer reflexão única e universal válida igualmente para todos. Como "anamnese da Palavra" torna presente o dado revelado em diversas situações. Cria unidade como solidariedade entre os diferentes;
- Aberta ao futuro, estimulando assim interpretações enriquecedoras, novas releituras situadas.
2.2. A teologia simbólica da patrística
A teologia patrística abarca o período de seis séculos, compreendendo desde a geração imediatamente posterior aos apóstolos até a dos que prepararam a teologia medieval.
O princípio patrístico "Crer para entender, entender para crer" ilumina este momento teológico. Recusa-se separar inteligência e fé, reflexão e caridade vivida, conhecimento profano do mundo e conhecimento esperançado à luz da revelação. Compreender e crer condicionam-se mutuamente. Os padres veem a teologia como "anagogia", subida rumo ao mistério divino.
"A partir da Natureza, a partir da história ou da Escritura ou da Liturgia, do que quer que fosse, a razão tendia, no mesmo impulso, rumo a inteligência espiritual, sempre à luz do Verbo e sob a moção do Espírito (...) A inteligência é assumida plenamente no dinamismo da fé, como inteligência crente, pela qual Deus não é somente objeto de conhecimento, mas fonte e termo do amor, que abraça toda a vida (...) Trata-se de teologia espiritual e ascendente, alimentada pela experiência intensa do mistério proclamado, celebrado e vivido, exercitada na leitura do texto sagrado e das realidades mundanas em perspectivas unitárias e totalizantes".
Os protagonistas da teologia patrística, bispos, sacerdotes e leigos, elaboram reflexão de fé de cunho predominantemente pastoral. Grande parte dos "Padres" são pastores em constante e fecundo contato com a experiência litúrgica e espiritual da comunidade eclesial. O material, hoje disponível, provém de diversas fontes: homilias, textos litúrgicos, comentários de textos da Escritura, textos de catequese, obras de caráter polêmico, etc. Embora a maioria dos escritos seja dirigida a comunidade cristã, alguns se voltam para a "intelectualidade" da época. No início do sec. III, formam-se "escolas teológicas". As mais conhecidas foram as de Antioquia e Alexandria, rivais entre si. Enquanto a primeira tendia à exegese literal da Escritura, na segunda predominava o sentido espiritual. A reflexão de fé dos padres é marcadamente bíblica, litúrgica, crístico-eclesial, inculturada e plural.


2.3. Características da teologia escolástica
Obedecendo à dinâmica de sua experiência interior, simultaneamente espiritual e intelectual, Tomás de Aquino empreende duas operações de imenso alcance: a assimilacio de Aristóteles e a recriacio dos elementos tradicionais da fé e da cultura cristãs, a partir da herança bíblica, patrística e filosófica (especialmente neoplatônica e aristotélica) que chegaram até ele. Mantém a princípio o contato com a Escritura e a espiritualidade. O alto grau de especulação intelectual não o distancia da experiência mística e da prática da caridade. A escolástica tardia, infelizmente, favoreceu este distanciamento.
A escolástica elabora a teologia no interior de círculo cultural particular e homogêneo, típico da cristandade. A conciliação entre a fé e a razão reflete-se no fato de os intelectuais serem religiosos, pessoas de fé. Assim, a filosofia não serve para buscar a verdade, mas para demonstra-la. A teologia escolástica medieval contribui singularmente para o processo de interpretação da fé. Ao passar dos símbolos e analogias para o conceito, imprime rigor teórico ao ato de pensar a fé. Ao utilizar lógica estrita, servindo-se de método dedutivo e articulando categorias abrangentes, ganha cidadania no âmbito do pensamento articulado pela razão.
A escolástica é tributária do ideal de saber e de ciência proveniente da filosofia aristotélica. Compartilha de seus limites: "Forte conceitualismo, racionalismo, essencialismo, metafisicismo, abstratismo, tendência ao dedutivismo, a-historicismo". Por considerar objeto da ciência somente as coisas necessárias e universais, exclui as necessárias e contingentes, ignorando assim o lado concreto, histórico, experimental, pessoal e relativo do ser. A matriz "ser-essência" que subjaz ao aristotelismo e à escolástica, se articula em esquema dual, que produz nefastos dualismos na vida de fé e suas expressões. A ênfase no momento científico-racional da fé favorece a separação crescente da teologia com a espiritualidade, liturgia, Escritura e vida da Igreja. A distinção conduz a dilaceração.

2.4. Características da teologia na idade moderna
A teologia hegemônica neste período caracteriza-se, antes de tudo, por sua submissão ao magistério. Este ganha sempre mais poder na Igreja, ao mesmo tempo que é fortemente questionado fora dela. A teologia arvora-se em grande arma do magistério para combater as heresias e eliminar o dissenso no interior da Igreja. Especializa-se nas tarefas de expor, definir, defender, provar e confirmar a fé ortodoxa examinar e condenar os erros. Deixa sua função de pesquisa para se tornar exposição autoritativa da doutrina. Sentem-se menos responsáveis pela intelecção cristã do que pela definição doutrinal e rigor da ortodoxia.
O primeiro destinatário da teologia passa a ser quase exclusivamente o clérigo, religioso ou diocesano. Com a regulamentação dos seminários, após o Concílio de Trento, a teologia torna-se curso obrigatório para a formação sacerdotal, de modo que os teólogos, praticamente todos do clero, elaboram um saber em vista da formação dos futuros sacerdotes. A teologia se desenvolve sobretudo em três grandes áreas: fundamental, dogmática e moral. Na fundamental, prevalece a apologética, cujas demonstrações não visam suscitar a fé, mas sim mostrar a credibilidade do testemunho dado a revelação por Jesus Cristo e sua Igreja.  A moral se estrutura sobretudo a partir da lei (divina, natural e positiva) e dos dez mandamentos.
Os manuais de teologia dogmática, por sua vez, seguem o método regressivo. Partem de uma tese, remetendo-a ao ensinamento atual do magistério eclesiástico. Tratam de prová-la, ao mostrar como este ensinamento está expresso originalmente na Escritura, em perfeita continuidade, presente nas expressões de fé católica patrística e medieval. Para enfrentar o racionalismo moderno, a teologia assume cada vez mais certo rigor científico no âmbito da concepção aristotélico-tomista de ciência. A clareza conceitual associa-se a certo "objetivismo" nas verdades de fé. Cresce assim o abismo em relação à espiritualidade.
O discurso teológico trabalha somente a dimensão cognitiva da fé, relegando a segundo plano seu aspecto existencial e celebrativo. A teologia, ministrada preferentemente nos seminários, isola-se das questões cotidianas do mundo secular. Imune de seu contágio, privada de
suas perguntas fertilizadoras, ela não consegue descobrir os sinais de Deus fora dos muros da Igreja.  A uniformização da teologia, a partir das instancias centralizadoras, cria a ilusão de que existe uma "teologia universal", elaborada nos frios e precisos laboratórios romanos.

2.5. A teologia em mudança na contemporaneidade
Ao defrontarmo-nos com um quadro tão cinzento, perguntamos como foi possível então a mudança da teologia, cujo marco inequívoco foi o Concilio Vaticano II?
Grande criatividade marca os 20 anos que antecederam o Concílio. A semente foi plantada, cultivada e produziu muitos frutos para a Igreja, principalmente no que se refere ao diálogo com o mundo contemporâneo.

2.6. A teologia da libertação na América Latina
A TdL diferencia-se das outras teologias. Não porque não se refira a Revelação. Nisso todas as teologias se igualam. Mas porque essa referencia se faz a partir de uma situação nova, diferente: a de nosso continente cristão, sob a tensão da dominação e da libertação.
I. Pontos de partida
Toda nova teologia nasce de novas perguntas, de dentro de um contexto sociocultural novo. Mas, antes de tudo, nasce de uma experiência de Deus que a alimenta em toda trajetória teórica. Uma teologia não se reduz a simples atividade intelectual individual. A TdL lança suas raízes no solo experiencial e eclesial da presença de Deus no pobre, no explorado e em sua luta pela libertação. Deus não se silencia totalmente na face machucada do pobre, mas manifesta-se operoso na ação fraterna de libertação. Par isso, a TdL arranca sobretudo da vivência do povo oprimido, dominado, empobrecido, que toma consciência de sua situação de miséria e se organiza para realizar o projeto de Deus sobre a humanidade: viver em fraternidade, em justiça, em dignidade.
O esquecimento dessa experiência-fonte da TdL pode levar seja a confundí-la com determinada prática libertadora - redução política - seja a descolá-la dessa experiência concreta e transformá-la em bandeira ideológica de alguma causa. A TdL renova-se e purifica-se continuamente ao voltar-se à experiência-base da presença de Deus no pobre e em sua luta. Se se desliga dela, assume o papel de pura ideologia; se não se identifica com determinada prática concreta, converte-se em puro empirismo, ativismo, pragmatismo. A TdL é a face teórico-crítica da prática da caridade libertadora. Sem ela, a prática perde lucidez. Sem a prática da caridade ela se esvazia. Soa como pura palavra sem força, sem consistência.
II. Teologia da libertação e práxis
Resumindo de modo didático, a TdL é uma:
a. Teologia da práxis: pois esta teologia haure seu material de reflexão da prática intrateológica, ou intraeclesial ou sociopolítica. A prática oferece a matéria-prima da TdL.
b. Teologia para a práxis: o produto teológico, o fruto da elaboração teológica - confronto do material assumido da prática com a Revelação - se orienta a iluminar a pratica teológica intraeclesial ou sociopolítica. Devolve-se à prática do fiel ou do cidadão o material assumido da pratica depois de ter sido trabalhado sob o angulo especificamente teológico, isto é, à luz da Revelação.
c. Teologia na práxis: o teólogo que faz a reflexão deve, de certo modo, estar articulado com a prática que reflete e para a qual reflete. Supõe-se dele uma opção de compromisso com a prática libertadora dos pobres. Opção que deve ultrapassar simplesmente o interior do coração para concretizar-se num mínimo de prática concreta de libertação junto aos pobres.
d. Teologia pela práxis: uma vez terminada a tarefa teológica de ter interpretado à luz da revelação as práticas pastorais e sociais e ter devolvido o produto teológico aos interessados, estes submetem-no a sua crítica. A prática deles julga se a tarefa teológica foi bem executada ou não. Se a teologia ajuda o processo de libertação dos pobres em seu verdadeiro sentido concreto e a manutenção dos valores ela é boa teologia. Claro que esta não deve ser entendida unicamente como eficiência prática, mas também, e de modo especial, como conservação da fé nessa prática.