terça-feira, 7 de outubro de 2014

ÊXODO: ACONTECIMENTO E PALAVRA

Podemos considerar a experiência do Egito como uma constante tensão (Deus se esqueceu do povo?) e, ao mesmo tempo, uma distensão (YHWH se lembra da promessa). Muitos estudiosos da Bíblia ou teólogos já se adentraram numa exploração do Êxodo, relacionando-o com o novo caminho de "libertação" da América Latina. É um evento querigmático, provocador, criativo, inexaurível, tomado justamente para uma leitura verdadeira da teologia da libertação.
O Êxodo é o acontecimento-chave, que modela a fé de Israel. Em todas as religiões, a cosmogonia exerce uma fascinação dramática. É forte o prestígio das origens, contudo, para além dos fenômenos do mundo físico, a cosmovisão hebraica constrói um outro epicentro: o acontecimento salvífico do Êxodo. O Êxodo, como fato histórico e salvífico, é tão original que atrai para si a experiência da criação. Por conseguinte, ele se converte em uma "reserva de sentido" inesgotável.
Uma chave hermenêutica importante: toda experiência humana gera sua "palavra". Sabemos que um acontecimento não é visto como decisivo na história de uma pessoa ou de um povo no momento em que acontece, mas depois de certo tempo, logo após ter "doado" sua energia recriadora. Isso fica claro em nossa experiências pessoais que estão cheias dessas manifestações-de-sentido.
O Êxodo sempre significou para eles a "origem" ontológica de sua realidade presente, ou se convertia em "memória" interpelante, quando deixavam de ser livres. O sentido latente do primeiro êxodo foi acontecendo como prolongamento linear daquela libertação e passou a se expressar em uma "palavra". Não se trata de um fato isolado que aconteceu por volta do século XIII a.C., mas de um fato refletido, aprofundado, explorado pela fé e captado em todas as suas projeções até a fixação do relato atual. Por isso podemos considerar como sendo uma mensagem profunda, pois contém a significação de uma experiência: Sofrimento do povo e ação amorosa de Deus.
Quando um acontecimento é contemplado do ponto de vista da fé e se reconhece nele a manifestação de Deus, a palavra-relato que lhe "dá novo significado" é interpretada como Palavra de Deus. É sempre memória e é sempre anúncio. O passado se torna "promessa" para o ouvinte dessa Palavra.
O acontecimento salvífico, uma vez aprofundado, é visto como desígnio, ou seja, como tendo sido preparado antes de se realizar. Numa cosmovisão mítica, pode ser explicado antecedentemente como destino. Por exemplo, quanto mais significativo o êxodo, tanto mais aparece como disposto nos planos de Deus. É muito usada a linguagem da vocação: uma forma de narrar o sentido mais profundo de um acontecimento a partir do mesmo. Portanto, o êxodo é o acontecimento programático da experiência religiosa de Israel e que pode inspirar a vivência de fé de muitas outras pessoas que nele se aprofundarem. Além do mais, inspira correntes teológicas, como por exemplo, a Teologia da Libertação na América Latina, que visam a promoção da vida humana, lutando contra qualquer forma de escravidão e de exploração.
Esse é o exemplo de um acontecimento como outros fatos históricos que são vividos por minúsculos grupos humanos, cientificamente determinados, mas que dão origem à descoberta, por trás deles, de uma presença de Deus agindo amorosamente em vista de sua libertação.
Toda exploração vem acompanhada de uma prepotência ignominiosa. A alienação dos hebreus chega a tal ponto que eles se tornam incapazes de esperar a salvação. Não se trata de uma infidelidade à graça, mas de uma alienação total do homem, que anula a própria esperança, última possibilidade de libertação. Muitas pessoas não são capazes de reconhecer suas próprias capacidades e se tornam alheias à sua realidade, com isso tantas “abominações” acontecem, “pessoas erradas” assumem o poder, porque aqueles que deveriam assumir determinada função não a fazem.  É possível que esta frase seja vista por alto, mas nela está imersa toda uma violência aniquiladora, quando a redescobrimos em tantos casos concretos: o oprimido se "integra" de tal maneira com o opressor e em sua própria situação de oprimido, que não imagina outra possibilidade que o "liberte".
O alienado não somente não tem consciência do que pode "ser" ou fazer, mas aceita a idéia de que as coisas não podem ser de outra maneira. O êxodo engendrará a consciência de liberdade do povo de Israel. Este relato é interpretação do acontecimento. É para dramatizar a presença do Deus libertador. Os hebreus, com efeito, eram numerosos e isso constituía um perigo político para a segurança interna do reino. Por isso, encarregaram as parteiras de matarem os filhos varões. Este panorama conota a opressão social e a condição a qual os hebreus eram mantidos.
Podemos considerar a libertação dos israelitas do Egito como um acontecimento de âmbito político e social. Deus não começou salvando em nível espiritual, nem sequer de pecado. Salva o homem total, cuja realização humana pode ser impedida não só por ele mesmo, mas também pelos outros homens que abusam do poder ou de seu "status" social.
Os mitos mesopotâmicos antecederam os relatos bíblicos, mas, se por um lado a situação do mito mesopotâmico parece mais autêntica: o homem se rebela e luta, ao passo que o "clamor" dos filhos de Israel parece mais passivo, clamam a Deus em vez de agir; por outro lado, a cosmovisão mesopotâmica não aponta nenhuma saída libertadora como acontece com a libertação do povo de Israel. Muitos teólogos afirmam que foi o acontecimento, em suas próprias entranhas, que foi manifestando uma presença divina com todas as suas implicações, inclusive a Aliança.
O clamor indica que o povo começa a conscientizar-se e, portanto, começa a trilhar o caminho da libertação. Quando clama e eleva seu grito de protesto e denúncia. Nos relatos vocacionais de Êxodo 3 e 6, YHWH é apresentado como sabedor da opressão do povo. Como é próprio do seu modo de agir, escolhe um intermediário como líder, neste caso Moisés. Ele, apesar do medo, responde positivamente, porém, uma recusa ao chamado significaria, como ainda significa, uma perda do próprio "ser".
A palavra de Deus é conscientizadora, tem caráter salvífico e vocacional. Moisés tinha medo devido à grandeza de sua missão. O seu diálogo com YHWH tem a intenção de abrandar o coração do povo, o desafio é aquele que oprime. Notamos que o opressor nunca liberta nem se liberta, pelo contrário, quando surge um movimento de libertação que o atinge, então ele oprime com mais violência. Todo este conflito é significativo, pois prepara o grande momento da libertação como uma ato de força de Deus. Na narrativa do êxodo, a força de Deus foi superior à do faraó. No entanto, hoje, existe uma consciência muito clara de que, além da graça de Deus, não há uma força superior à do povo unido e comprometido.
O ritual da Páscoa é o memorial do acontecimento salvador. Forma um círculo hermenêutico: do acontecimento arquetípico ao presente existencial (êxodo - libertação do povo - Páscoa de Cristo - continuidade - processo atual de libertação). A partir da saída do Egito, o opressor deixa de sê-lo, pois perde seus escravos, mas mesmo diante daquele processo libertador o povo ainda se permitiu uma última dúvida (Ex 14, 11ss). Trata-se de um episódio paradoxal, só o próprio acontecimento revela todo o seu "sentido".
Podemos perceber na narrativa do canto triunfal uma forma de expressão do sentido. A saída do Egito e a entrada na terra prometida são correlatos, um aprofunda o sentido do outro num constante processo dialético e marcadamente significativo.
A narração conta mais do que aconteceu exteriormente no ato da libertação. É interpretação, que nunca deforma o acontecimento, mas o enriquece com uma visão mais profunda. A história bíblica é manifestadora de um sentido, mais que reprodução de fatos contingentes. Uma história sagrada não pode coincidir com uma crônica comum, ela manifesta o desígnio e a significação da história conhecida pelos homens.
O êxodo foi "a" experiência de salvação, entendida pelo povo em termos de libertação. Compreende-se a Deus como salvador, porque Ele atua na história dos homens e, por isso, também,  libertação não é simplesmente um conceito adventício, mas o centro do querigma bíblico. Percebemos, ainda, que na história da salvação, Deus se serve de mediadores humanos. Portanto, Deus se revela tanto através do acontecimento, como através de uma pessoa. Era mais fácil para os hebreus crer em YHWH diretamente, do que em Moisés, ser humano como eles, mas esse mesmo Deus se expressava através de Moisés, o qual tinha que assumir essa forma histórica e pessoal da vocação para a liberdade.
A fé bíblica, que não é intelectual, mas dinâmica e existencial, se expressa em várias dimensões: fé-reconhecimento de Deus, fé-compromisso à Palavra, fé-força no testemunho, fé-abertura ao dom de Deus e fé-aceitação do enviado. Nossa história teve e tem, sem dúvida, novos Moisés que dizem sua palavra de conscientização libertadora. Fica uma questão para pensarmos: tem alguém disposto a ouvir?
A consciência de liberdade de Israel, depois de refletida e amadurecida, se eleva à categoria de mensagem para todo homem. Contudo, se a liberdade é um dos valores intrínsecos do homem, por que, principalmente, na América Latina, a Igreja, às vezes, se faz tão alienada a ponto de não ver os sinais dos tempos, que mostram claramente o caminho da libertação? Quantas vezes insistimos em estruturas e discursos que não conseguem responder à problemática do contexto ao qual estamos inseridos?
A prática do amor, num contexto de opressão, exige luta. Todo caminho de libertação se realiza quando se suprime o poder opressor e se instaura outro poder, o salvífico. A justiça é um bem radical, que reclama do amor uma “atitude violenta”, ou seja, deixar o comodismo de lado e ousar fazer diferente diante do novo que se apresenta. A liberdade é um dom tão íntimo e exigente que, quando está obscurecida ou perdida, procura a libertação a qualquer custo. O Deus da paz é antes o da justiça e da liberdade. A paz é pecado quando serve para manter a injustiça.

Referência bibliográfica
CROATTO, J. Severino. Êxodo: uma hermenêutica da liberdade. São Paulo: Paulinas, 1981.