Podemos considerar a
experiência do Egito como uma constante tensão (Deus se esqueceu do povo?) e,
ao mesmo tempo, uma distensão (YHWH se lembra da promessa). Muitos estudiosos
da Bíblia ou teólogos já se adentraram numa exploração do Êxodo, relacionando-o
com o novo caminho de "libertação" da América Latina. É um evento
querigmático, provocador, criativo, inexaurível, tomado justamente para uma
leitura verdadeira da teologia da libertação.
O Êxodo é o
acontecimento-chave, que modela a fé de Israel. Em todas as religiões, a
cosmogonia exerce uma fascinação dramática. É forte o prestígio das origens,
contudo, para além dos fenômenos do mundo físico, a cosmovisão hebraica
constrói um outro epicentro: o acontecimento salvífico do Êxodo. O Êxodo, como
fato histórico e salvífico, é tão original que atrai para si a experiência da
criação. Por conseguinte, ele se converte em uma "reserva de sentido"
inesgotável.
Uma chave hermenêutica
importante: toda experiência humana gera sua "palavra". Sabemos que um
acontecimento não é visto como decisivo na história de uma pessoa ou de um povo
no momento em que acontece, mas depois de certo tempo, logo após ter
"doado" sua energia recriadora. Isso fica claro em nossa experiências
pessoais que estão cheias dessas manifestações-de-sentido.
O Êxodo sempre significou para
eles a "origem" ontológica de sua realidade presente, ou se convertia
em "memória" interpelante, quando deixavam de ser livres. O sentido
latente do primeiro êxodo foi acontecendo como prolongamento linear daquela
libertação e passou a se expressar em uma "palavra". Não se trata de
um fato isolado que aconteceu por volta do século XIII a.C., mas de um fato
refletido, aprofundado, explorado pela fé e captado em todas as suas projeções
até a fixação do relato atual. Por isso podemos considerar como sendo uma mensagem
profunda, pois contém a significação de uma experiência: Sofrimento do povo e
ação amorosa de Deus.
Quando um acontecimento é
contemplado do ponto de vista da fé e se reconhece nele a manifestação de Deus,
a palavra-relato que lhe "dá novo significado" é interpretada como
Palavra de Deus. É sempre memória e é sempre anúncio. O passado se torna
"promessa" para o ouvinte dessa Palavra.
O acontecimento salvífico, uma
vez aprofundado, é visto como desígnio, ou seja, como tendo sido preparado
antes de se realizar. Numa cosmovisão mítica, pode ser explicado
antecedentemente como destino. Por exemplo, quanto mais significativo o êxodo,
tanto mais aparece como disposto nos planos de Deus. É muito usada a linguagem
da vocação: uma forma de narrar o sentido mais profundo de um acontecimento a
partir do mesmo. Portanto, o êxodo é o acontecimento programático da experiência
religiosa de Israel e que pode inspirar a vivência de fé de muitas outras
pessoas que nele se aprofundarem. Além do mais, inspira correntes teológicas,
como por exemplo, a Teologia da Libertação na América Latina, que visam a
promoção da vida humana, lutando contra qualquer forma de escravidão e de
exploração.
Esse é o exemplo de um
acontecimento como outros fatos históricos que são vividos por minúsculos
grupos humanos, cientificamente determinados, mas que dão origem à descoberta,
por trás deles, de uma presença de Deus agindo amorosamente em vista de sua
libertação.
Toda exploração vem acompanhada
de uma prepotência ignominiosa. A alienação dos hebreus chega a tal ponto que
eles se tornam incapazes de esperar a salvação. Não se trata de uma
infidelidade à graça, mas de uma alienação total do homem, que anula a própria
esperança, última possibilidade de libertação. Muitas pessoas não são capazes
de reconhecer suas próprias capacidades e se tornam alheias à sua realidade,
com isso tantas “abominações” acontecem, “pessoas erradas” assumem o poder,
porque aqueles que deveriam assumir determinada função não a fazem. É possível que esta frase seja vista por
alto, mas nela está imersa toda uma violência aniquiladora, quando a
redescobrimos em tantos casos concretos: o oprimido se "integra" de
tal maneira com o opressor e em sua própria situação de oprimido, que não
imagina outra possibilidade que o "liberte".
O alienado não somente não tem
consciência do que pode "ser" ou fazer, mas aceita a idéia de que as
coisas não podem ser de outra maneira. O êxodo engendrará a consciência de
liberdade do povo de Israel. Este relato é interpretação do acontecimento. É
para dramatizar a presença do Deus libertador. Os hebreus, com efeito, eram
numerosos e isso constituía um perigo político para a segurança interna do
reino. Por isso, encarregaram as parteiras de matarem os filhos varões. Este
panorama conota a opressão social e a condição a qual os hebreus eram mantidos.
Podemos considerar a libertação
dos israelitas do Egito como um acontecimento de âmbito político e social. Deus
não começou salvando em nível espiritual, nem sequer de pecado. Salva o homem
total, cuja realização humana pode ser impedida não só por ele mesmo, mas
também pelos outros homens que abusam do poder ou de seu "status"
social.
Os mitos mesopotâmicos antecederam
os relatos bíblicos, mas, se por um lado a situação do mito mesopotâmico parece
mais autêntica: o homem se rebela e luta, ao passo que o "clamor" dos
filhos de Israel parece mais passivo, clamam a Deus em vez de agir; por outro
lado, a cosmovisão mesopotâmica não aponta nenhuma saída libertadora como
acontece com a libertação do povo de Israel. Muitos teólogos afirmam que foi o
acontecimento, em suas próprias entranhas, que foi manifestando uma presença
divina com todas as suas implicações, inclusive a Aliança.
O clamor indica que o povo
começa a conscientizar-se e, portanto, começa a trilhar o caminho da
libertação. Quando clama e eleva seu grito de protesto e denúncia. Nos relatos
vocacionais de Êxodo 3 e 6, YHWH é apresentado como sabedor da opressão do
povo. Como é próprio do seu modo de agir, escolhe um intermediário como líder,
neste caso Moisés. Ele, apesar do medo, responde positivamente, porém, uma
recusa ao chamado significaria, como ainda significa, uma perda do próprio
"ser".
A palavra de Deus é
conscientizadora, tem caráter salvífico e vocacional. Moisés tinha medo devido
à grandeza de sua missão. O seu diálogo com YHWH tem a intenção de abrandar o
coração do povo, o desafio é aquele que oprime. Notamos que o opressor nunca
liberta nem se liberta, pelo contrário, quando surge um movimento de libertação
que o atinge, então ele oprime com mais violência. Todo este conflito é
significativo, pois prepara o grande momento da libertação como uma ato de
força de Deus. Na narrativa do êxodo, a força de Deus foi superior à do faraó.
No entanto, hoje, existe uma consciência muito clara de que, além da graça de
Deus, não há uma força superior à do povo unido e comprometido.
O ritual da Páscoa é o memorial
do acontecimento salvador. Forma um círculo hermenêutico: do acontecimento
arquetípico ao presente existencial (êxodo - libertação do povo - Páscoa de
Cristo - continuidade - processo atual de libertação). A partir da saída do
Egito, o opressor deixa de sê-lo, pois perde seus escravos, mas mesmo diante daquele
processo libertador o povo ainda se permitiu uma última dúvida (Ex 14, 11ss).
Trata-se de um episódio paradoxal, só o próprio acontecimento revela todo o seu
"sentido".
Podemos perceber na narrativa
do canto triunfal uma forma de expressão do sentido. A saída do Egito e a
entrada na terra prometida são correlatos, um aprofunda o sentido do outro num
constante processo dialético e marcadamente significativo.
A narração conta mais do que
aconteceu exteriormente no ato da libertação. É interpretação, que nunca
deforma o acontecimento, mas o enriquece com uma visão mais profunda. A
história bíblica é manifestadora de um sentido, mais que reprodução de fatos
contingentes. Uma história sagrada não pode coincidir com uma crônica comum,
ela manifesta o desígnio e a significação da história conhecida pelos homens.
O êxodo foi "a"
experiência de salvação, entendida pelo povo em termos de libertação.
Compreende-se a Deus como salvador, porque Ele atua na história dos homens e,
por isso, também, libertação não é simplesmente
um conceito adventício, mas o centro do querigma bíblico. Percebemos, ainda,
que na história da salvação, Deus se serve de mediadores humanos. Portanto,
Deus se revela tanto através do acontecimento, como através de uma pessoa. Era
mais fácil para os hebreus crer em YHWH diretamente, do que em Moisés, ser
humano como eles, mas esse mesmo Deus se expressava através de Moisés, o qual
tinha que assumir essa forma histórica e pessoal da vocação para a liberdade.
A fé bíblica, que não é
intelectual, mas dinâmica e existencial, se expressa em várias dimensões:
fé-reconhecimento de Deus, fé-compromisso à Palavra, fé-força no testemunho,
fé-abertura ao dom de Deus e fé-aceitação do enviado. Nossa história teve e
tem, sem dúvida, novos Moisés que dizem sua palavra de conscientização
libertadora. Fica uma questão para pensarmos: tem alguém disposto a ouvir?
A consciência de liberdade de
Israel, depois de refletida e amadurecida, se eleva à categoria de mensagem
para todo homem. Contudo, se a liberdade é um dos valores intrínsecos do homem,
por que, principalmente, na América Latina, a Igreja, às vezes, se faz tão
alienada a ponto de não ver os sinais dos tempos, que mostram claramente o
caminho da libertação? Quantas vezes insistimos em estruturas e discursos que
não conseguem responder à problemática do contexto ao qual estamos inseridos?
A prática do amor, num contexto
de opressão, exige luta. Todo caminho de libertação se realiza quando se
suprime o poder opressor e se instaura outro poder, o salvífico. A justiça é um
bem radical, que reclama do amor uma “atitude violenta”, ou seja, deixar o
comodismo de lado e ousar fazer diferente diante do novo que se apresenta. A
liberdade é um dom tão íntimo e exigente que, quando está obscurecida ou perdida,
procura a libertação a qualquer custo. O Deus da paz é antes o da justiça e da
liberdade. A paz é pecado quando serve para manter a injustiça.
Referência
bibliográfica
CROATTO, J. Severino. Êxodo: uma hermenêutica da liberdade.
São Paulo: Paulinas, 1981.