terça-feira, 16 de setembro de 2014

A Interpretação de Gênesis 1-11

Gilles Droullet inicia a temática deste capítulo chamando a atenção para um fator muito interessante:o que podemos observar quando comparamos os dois primeiros capítulos do livro do Gênesis com os nove seguintes. Os dois primeiros evocam um mundo em que tudo é harmonioso e perfeito, enquanto os nove seguintes descrevem o mundo atual com o mal sob todas as suas formas. Gênesis l e 2 descrevem o mundo de Deus, enquanto nosso mundo é descrito por Gênesis 3 a 11. Desse modo, o estudo fica dividido em três partes: Gn 1, sobre a criação em seis dias; Gn 2, sobre o jardim do Éden ou paraíso; Gn 3-11, discorrendo sobre o significado do pecado a partir dos episódios de Caim e Abel, o Dilúvio e a torre de Babel.
Em Gn 1, escrito por ocasião do exílio na Babilônia, o escritor Sacerdotal apresenta a criação do mundo como uma obra divina aplicando a Deus o modelo humano de organização do trabalho. Devemos ter em conta que este não se trata de um texto de caráter científico, por conseguinte, todo esforço pela concordância entre os detalhes próprios do texto e nossos dados científicos consiste numa atitude equivocada.
À primeira vista, temos a impressão de que se trata do nosso universo atual. O autor quer certamente dizer que tudo isso é bom e vem de Deus. Porém, quando olhamos mais atentamente à nossa volta, constatamos também a desordem, as tragédias, a violência, o sofrimento e, por toda parte, a morte. Nós sabemos que essa criação perfeita nunca foi concretizada. Assim, já que nunca houve criação perfeita, esse texto constitui também uma narrativa de esperança, um anúncio do mundo que Deus vai realizar no fim dos tempos.
O texto de Gênesis l quer dizer ainda que um dia, a criação será como Deus sempre quis: tudo será bom; quantos desejos humanos podemos encontrar nela impressos: que não haja o mal; que o sofrimento e a morte cheguem ao fim. São João afirmará que a Palavra pela qual Deus criou o mundo é seu próprio Filho: o projeto de Deus para a humanidade é uma criação perfeita.
Quando adentramos no estudo de Gn 2 vamos descobrindo que esse texto foi escrito pelo autor Javista 400 anos antes do relato da criação em seis dias. Por meio da simbologia do jardim do Éden ele expressa o projeto de Deus para toda a humanidade. Deus não está reservado apenas a Israel, mas, como criador do mundo, seu projeto diz respeito a todos os povos.
Na perspectiva dessa narrativa, Deus não cria exclusivamente por meio de sua palavra, mas age como um homem, como o oleiro que modela a argila, como um jardineiro que planta um jardim, entre outras “funções” especificamente humanas. O homem, sua criatura por excelência, cultiva e guarda esse jardim, sem conhecer esforço nem suor. É um mundo no qual a morte não existe, graças à presença da árvore da vida. A mulher é igual ao homem, o autor faz questão de expressar a harmonia interior existente entre o homem e a mulher pela nudez com a qual eles convivem com naturalidade. Finalmente, por meio da cena em que Deus caminha no jardim para conversar com o homem e com a mulher, ele manifesta a aliança de Deus com o homem.
Essa narrativa é, portanto, alegórica. Ela nos revela a vontade de Deus. Chama a atenção para uma harmonia necessária do homem: consigo mesmo; com os outros; com o mundo; e com Deus. Este não é autor do mal. Ele está em aliança com o homem, é perpetuamente um aliado do homem. Jesus proclamava: "O Reino de Deus está próximo" (Mc 1,15; Mt 4,17).  Ele retoma de maneira extremamente sintética a grande esperança das duas primeiras páginas da Bíblia: a esperança da criação perfeita e do paraíso. Além disso, palavra e ação nele se fundem. Ele mostrou, pelos seus gestos, aquilo que Deus quer, aquilo que será o mundo de Deus. Ele quer a igualdade entre o homem e a mulher. Dirigindo-se a todos os que eram marginalizados, ele revelou que Deus era e será o Rei, o protetor dos pequenos.
O próprio Jesus viveu dessa grande esperança de Gênesis 1-2. Ele mesmo aguardou a realização da plenitude que viria a este mundo em decorrência de sua própria ressurreição. Na hora de sua morte, ele faz referência ao jardim do Éden. E Deus, ao ressuscitá-lo, cumpriu nele as duas grandes profecias, a da criação perfeita e a do paraíso: Jesus é tido, na perspectiva cristã, como o novo Adão, o homem definitivo, no qual o projeto de Deus se realizou plenamente.
Nas narrativas de Gn 3-11 vamos imergir no imenso enigma do mundo, a razão pela qual Deus não pôde realizar o mundo a que sonhou: o problema do mal. “O autor” vai formando uma pintura do mal no mundo em quatro painéis sucessivos: o homem e a mulher no paraíso, o episódio de Caim e Abel, o dilúvio e a torre de Babel.
Em Gênesis 3-11, temos uma visão da humanidade desde o início até o fim dos tempos. O autor, ao mesmo tempo, descreve o mal observável no mundo, desvenda um mal interior presente em cada pessoa humana e desmascara as forças do mal, presentes no universo. Alguns aspectos do mal no mundo: O sofrimento e a morte (Gn 3), os assassinatos e as guerras (Gn 4), a corrupção e a violência (Gn 6-9), a divisão e a incompreensão (Gn 11).
Daí, vamos percebendo que a verdade de Gênesis 3-11 é sempre atual. Basta olharmos em torno de nós ou assistirmos aos telejornais, ou simplesmente olharmos para dentro de nós mesmos. A grande descoberta do escritor é a existência de um mal radical, interior, presente em todas as pessoas. Aí ele, mais uma vez, subdivide a questão em quatro quadros que se intercomplementam: o desejo do ser humano de se tornar “deus” por si mesmo (o fruto do conhecimento); a presença em nós de sentimentos que fomentam a violência, por exemplo, a inveja, o ódio (Caim mata Abel); o coração corrompido pelas forças malignas (o dilúvio); a ganância pela plenitude sem a graça de Deus (a torre de Babel).
O fruto a ser comido é bem singular... É algo bem distinto de uma maçã! O autor bíblico quer transmitir a seguinte mensagem: o homem e a mulher comem este fruto, de modo que nós também o comemos. Por isso que os nomes Adão e Eva são nomes simbólicos. Pois, é desde a chegada da humanidade no universo que o pecado existe. Mas este pecado original é também um pecado atual. Qual é esse "pecado", esse fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal?
Fica claro para nós que o desejo de Deus na Bíblia é uma vida plena para o homem. Se nós sonhamos em ser como deuses, é porque Deus, nosso Criador, semeou em nós essa busca por uma felicidade infinita: “o homem é fundamentalmente desejo de ser Deus” (Sartre). Não há nada de mal nesta busca pelo infinito inscrita em nós. Contudo, a narrativa bíblica salienta que o homem e a mulher querem chegar à plenitude por si mesmos. Tal é o fruto que o homem e a mulher comem: o desejo de autossuficiência. Cada um gostaria que Deus não existisse para poder chegar à plenitude por si mesmo. A tentação permanente do ser humano é a de querer ser autossuficiente e se fecha a Deus. É esse fechamento que constitui o pecado.
Essa rejeição começou com a chegada da humanidade ao mundo, ou seja, com a chegada da consciência ao universo material. Somente o ser humano é capaz desse pecado, pois ele é o único ser capaz de operar um retorno a si mesmo, de se situar na existência e de se situar diante de Deus. Ele é o único sobre a Terra a participar do mundo material e do mundo espiritual. Ele é, assim, a consciência da matéria, o lugar no qual ela se torna pessoal e livre.
O que Gênesis 3 afirma é que desde que a humanidade emergiu no mundo, ela se considerou rica o suficiente para subsistir por si mesma. O momento da tentação coincide com a aparição da consciência e da liberdade no mundo. O exercício da liberdade do homem se orienta em direção a uma recusa. O fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, ser deuses por nós mesmos, é sempre sedutor de se comer.
Deus, tal como é apresentado no Gênesis, quer que nos tornemos como ele, o que se confirma ainda mais na perspectiva cristã: “Deus se tornou homem para que o homem se tornasse Deus”(Varillon). Por isso que o natural é o nosso desejo de nos mantermos centrados sobre nós mesmos. Consequentemente, a fé e a conversão exigem um arrebatamento de nós mesmos. Converter-se é transformar-se completamente, mudar o foco do olhar, descentralizar-se.
Daí que se torna imprescindível superar dois sentimentos que tomam conta da nossa existência se não formos vigilantes em nossas ações: a inveja e o ódio. Exatamente por deixá-los florescer que desde o início da história humana existem assassinatos e guerras no mundo. Caim que mata Abel: é a representação daquilo que se passa hoje em dia. Os homens continuam matando seus semelhantes, desrespeitando a vida, que é dom de Deus.
A narrativa do dilúvio revela a maldade que estava espalhada por toda parte.  O grande problema é que esse mal é interior, o coração do homem está corrompido. Por isso, é difícil de se diagnosticar a situação. Muitas vezes não percebemos “a bomba” que está prestes a explodir ou fechamos os olhos para determinada situação. Poderíamos dizer que estamos "nos dias que precedem o dilúvio": a corrupção e a violência estão por toda a terra.
Com a figura de Noé, apresentado como fiel a Deus, podemos novamente reconhecer a grande abertura de espírito: Deus permanece em aliança com o homem e com toda a criação. Noé, "o homem justo, íntegro, que andava com Deus"(Gn 6,9) é também uma prefiguração de Cristo, o qual, juntamente com os seus, será salvo do mundo atual para ingressar em uma nova criação. A arca de Noé é uma imagem da barca que é a Igreja, sacudida pelas águas que simbolizam as forças malignas. Contudo, é destacado também o símbolo do arco-íris ao qual, tanto no início como no fim da Bíblia, significa que, um dia, o dilúvio aconteceu, ocasionando, assim, o fim do mundo atual, mas que uma nova ordem do mundo será inaugurada, e a paz restabelecida. Essa deve ser a nossa razão de lutar e, consequentemente, viver o Reino e a esperança de Sua plenitude na vida eterna.
Relatando sobre a torre de Babel, o autor utiliza a expressão penetrar os céus, quer dizer, o mesmo que querer ser como deuses. É querer chegar à plenitude sem Deus. O marxismo foi um exemplo disso, mascarado numa promessa de estabelecimento da justiça, mas, na verdade, prometia à humanidade chegar a uma realização plena, sem Deus.
Atualmente, o projeto de uma sociedade unificada, conhecido como o fenômeno da "globalização", se apoia sobre o pretexto da aproximação dos povos, favorecida pelo notável desenvolvimento dos meios de comunicação. Contudo, uma vez mais, aquilo que é bom em si (ou seja, um projeto de unidade) é utilizado para a escravização da humanidade. Dominados pelo dinheiro, aqueles que têm o poder pouco se importam com o aspecto humanitário. Apresentando-se com a máscara da fraternidade, da igualdade, da unidade, uma elite anônima age às escondidas, buscando submeter as pessoas, dominá-las. Visam simplesmente à uniformização por meio da abolição de culturas particulares. O desígnio de Deus é exatamente outro: unir uma grande multidão, mas cada um guarda sua identidade (Ap 7,9). Sabemos da riqueza que existe na essência de cada cultura particular, levando em conta a diversidade de dons e carismas.
O projeto da torre de Babel continua em andamento, inspirado por um espírito de divisão que se apresenta como espírito de unificação. Nossa sociedade quer se realizar sem Deus. Entretanto, sem Deus ninguém se compreende (Gn 11,7-9). Pelo Espírito Santo, que é o Espírito de Amor, que a humanidade se reencontra e se respeita em suas diferenças.
Por trás da imagem da serpente se esconde um ser pessoal, anterior ao homem.  A Bíblia, de Génesis 3 a Apocalipse 20, indica que a rejeição a Deus é de responsabilidade do homem, produz-se sob a influência de uma força maligna que compromete a realização do projeto de Deus. Por isso não podemos estudar a Bíblia, com seriedade, nos silenciando sobre a presença de Satanás. Certamente esse ser não foi criado como uma criatura maligna, mas é certo que ele rejeitou Deus e que sua revolta repercute no mundo humano. Sua mentira mais perniciosa é a de apresentar Deus como aquele que diminui o homem, quando na verdade Deus quer completar o homem. O livro da Sabedoria nos chama a atenção para o fato de que o diabo tem inveja do homem e da mulher, porque estes ainda podem chegar à plenitude pessoal por meio de uma relação com Deus.
Um combate decisivo se estabelece desde o início da vida pública de Jesus, na qual Satanás está presente como o tentador. Aliás, o fato de Jesus ter sido realmente tentado é da mais alta importância; caso contrário, ele não teria realmente participado de nossa condição humana e não poderia ser o Salvador. De acordo com os evangelhos, Jesus foi tentado de todas as maneiras por Satanás em sua vida terrena, frequentemente por intermédio de seus próprios discípulos, por exemplo, Pedro, que queria um Messias conquistador (Mc 8,33). É tentado por todos aqueles que querem que ele imponha a fé por meio de milagres. Lucas revela que ele “crescia em sabedoria” (Lc 2, 40.52) para mostrar que ele meditou as Escrituras e viveu uma vida como um verdadeiro “campo de batalha”.
A Bíblia, ao mesmo tempo em que nos revela Deus com clareza, conscientiza-nos a respeito das forças do mal. Um Deus que convida o homem a que se volte para Ele, em vez de se fechar sobre si mesmo. Jesus nos revela, ao expulsar os demônios, que Deus permanece invencível e que um dia sua criação estará definitivamente liberta das forças do mal. O demônio é absolutamente contrário do que é Deus, pois o desejo manifestado por ele é o de querer passar por cima da vontade das pessoas, de fazer com elas o que bem entender, de as possuir. Deus, em contrapartida, nunca força a liberdade individual.
A Nova Era elimina claramente o Deus pessoal, substituindo-o pelas energias cósmicas ou pelo "divino em nós". O contexto pós-moderno ao perder a referência ou a base de sustentação da reflexão, do agir ético, etc., perdeu também o sentido para o qual deve caminhar nossa existência, que é Deus encarnado em Jesus Cristo. O que predomina hoje, relativismo, egoísmo que levam a mentiras e homicídios são, portanto, sinais de que o homem está possuído pelas forças do mal.
Jesus, no momento de sua morte, mesmo com todo aquele arsenal do mal que estava montado – traição, prisão, abandono dos discípulos, negação de Pedro, mentira, ódio, zombaria, rancor, martírio – ele não penetrou em tais formas do mal. Ao contrário, permaneceu fiel, livre, verdadeiro, sem ressentimento, nem desejo de vingança ou de dominação.
Portanto, refletindo sobre esses primeiro onze capítulos do livro do Gênesis, vamos notando que são “narrativas míticas” cujo objetivo essencial é o de remontar para o antes da criação, com vistas a relatar o projeto de Deus. Os autores compreenderam que "este mundo da existência humana não é nem pode ser aquele que Deus podia criar". Eles afirmam que nós fomos projetados para ser à sua imagem. De fato, segundo a Bíblia, Deus não nos criou pecadores. Percebemos isso transportando o Deus do Êxodo para o começo do mundo, ao modo do escritor Javista, segundo o qual viu o Criador como aquele que sabia que teria de salvar a criatura. Deus previu que seria rejeitado. Nesse sentido, para os autores, Deus viu com antecedência toda a história do pecado da humanidade. E então, acrescentam eles, com antecedência ele nos respeitou. O homem e a mulher é que permitem que as forças do mal os atinjam. Sendo assim, "segue-se que o mal só é atribuível a Deus na medida em que ele respeita a liberdade humana."
A partir do instante em que a relação com Deus é rompida, o homem e a mulher veem por si mesmos que estão nus, o que é diferente de constatar a diferença de sexo um do outro! Sem Deus, encontramo-nos verdadeiramente nus, num enorme vazio. Além do mais, o homem e a mulher espontaneamente se escondem, o que significa que são julgados por si mesmos. Deus, por sua vez, procura-os. De sua parte, a aliança nunca é rompida. Ele continua a amar. E a única coisa que ele faz é constatar o que o homem e a mulher decidiram. Deus não fixa o destino dos seres humanos. Cada um fixa seu próprio destino. Jean-Paul Sartre, na obra O existencialismo é um humanismo já afirmara: "O homem será aquilo que ele fizer de si".
Aqui reside um dado essencial do amor. Quando se ama, deve-se reconhecer diante de si uma outra liberdade. O inferno não é uma criação de Deus, mas uma possibilidade humana. E se afirmamos que o inferno não existe, queremos dizer que não somos livres. Dessa forma, através dos onze primeiros capítulos do Gênesis, uma grande esperança se desenha, apesar do mal existente. Suas páginas nos apresentam um Deus benevolente. Ele vê toda a humanidade fechada a ele e, mesmo assim, anuncia uma vitória da humanidade sobre as forças do mal. Ele vê toda a maldade do homem sobre a terra e ainda se mantém em aliança com ele e com toda a criação, é uma das mais belas traduções do amor pleno: apesar do mal que os homens podem fazer, eles não podem impedir Deus de realizar o mundo tal como ele desejava, perfeito.
Outro aspecto interessante é o fato de que os autores fazem a idade dos homens diminuir progressivamente. Isso apresenta um significado teológico profundo: quanto mais o mal se propaga na humanidade, menos o homem vive. A ressurreição de Jesus é a garantia de Deus sobre as profecias do Gênesis. Deus é fiel, e esse lado bom do mundo nos conduz a espreitar o que será o mundo futuro.

Referência bibliográfica
DROULLET, Gilles. Compreender o AT. São Paulo: Paulus, 2008.

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