terça-feira, 16 de setembro de 2014

Abraão: a vida, uma aventura sem limites

José Alegre Aragüés
Vamos discorrer sobre um personagem que gostaria desde logo de anunciar como apaixonante. Se já o título traz esse sentido de entender a vida como uma aventura sempre aberta, é porque o protagonista possui todas as características de um ser humano aberto, dramático e, acima de tudo, portador de esperança. Seu ciclo integra-se na fase que denominamos a história dos patriarcas. Até o capítulo 12 do Gênesis, a Bíblia esteve nos falando de uma história comum a toda a humanidade; é a história do mal, a história de nossa própria realidade, a história de nossa condição, que afeta todo ser humano. A partir de Gn 12 até o final do livro, seu intento é desenvolver outra história, diferente.
Se até então contou-nos a história do mundo, não foi porque quis contar-nos os fatos que deram origem ao mundo físico, mas para responder à pergunta sobre o que é o ser humano e quais as causas que o condicionam para que seja como é e se encontre sujeito a uma realidade tão problemática como a que vemos em nós mesmos e ao nosso redor. Para alguns, essas narrativas têm, pois, uma interpretação simbólica, pretendendo responder à seguinte questão: o que é o ser humano? Para outros, manifestam uma preocupação etiológica, ou seja, averiguar a causa: por que somos e agimos assim. O problema do mal e a relação do ser humano com o mal. Porque existe o mal, eis a eterna pergunta a que incessantemente a realidade nos remete, e que está presente nestes 12 primeiros capítulos do Gênesis com a mesma intensidade com que nos é apresentada ao longo de toda a nossa vida, motivando tanta literatura, discussão e ressentimento.
A partir, pois, dessa história do mundo, começa a história do povo. A seguir, a narração bíblica vai centrar-se na história própria de uma comunidade e Deus continuará a ser o dono e o criador da história em sua totalidade, ainda que isso permaneça um tanto oculto, embora não menos real. Esta história, que vai do capítulo 12 ao 50, com que termina o Gênesis, é um pequeno mundo. Em sua forma atual, ela nos é apresentada como a história de uma família ao longo de três gerações, na qual palpita a época nômade e seminômade das tribos de Israel. Apresenta-se, pois, como um prefácio a toda a história nacional. O autor demonstra grande delicadeza e domínio para tecer os diversos relatos. Tem fluência, mantém continuidade ao descrever a emigração de Abraão, a sorte de seu filho e de seu neto até concluir no grande funeral que transporta o cadáver de Jacó para a Palestina, após contemplar como seu filho José foi elevado ao poder e à máxima autoridade no Egito. Assim, esses relatos existiram antes de forma independente, e só mais tarde foram inseridos nesta grande história, motivo pelo qual eram contados como histórias individuais que se transmitiam de geração em geração.
Com o correr do tempo e de acordo com os lugares, muitos detalhes dessas histórias mudaram, outros foram esquecidos, a outros acrescentaram-se algumas coisas, um mesmo fato foi atribuído a per onagens diversos, encontrando-se repetido. No final, entretanto, todos correspondem a essa história, unificada pelo últimos redatores no séc. V a.C. As narrativas de Abraão procedem de três fontes: a javista, a eloísta e a sacerdotal.

1. Cronologia: história ou mito?
Situar Abraão cronologicamente: descobrir e reconhecer os dados históricos é uma tarefa muito difícil. Todavia, pelos dados que temos à nossa disposição, hoje sabemos que pode ser situado nos séculos XX ou XIX a.C. Ademais, a propósito desses dados, houve três tipos de interpretação que, apesar de tudo, coexistem: interpretação historicista, crítica radical e histórico-crítica. Entretanto, a primeira aceita como histórica toda a narração, assumindo até as contradições cronológicas. Hoje, todavia, muitas pessoas estão empenhadas não só em entender literalmente a Bíblia, mas também em aduzir argumentação cronológica em tudo. A segunda, que se manifestou principalmente em inícios de nosso século, opõe-se a toda a historicidade, tencionando ver apenas uma composição literária, uma ficção que se põe a serviço de uma teologia da história, vale dizer, seriam reunidas algumas tradições legendárias para dar-nos um sentido da história e da vida humana. A terceira, que predomina hoje entre os estudiosos da Bíblia, é aquela que, servindo-se das descobertas arqueológicas dos últimos tempos, reconhece um fundo histórico em grau muito mais intenso do que se havia pensado até agora, com base no qual se elaborou uma reflexão teológica que pretende transmitir uma visão em torno do ser humano com suas angústias, sua solidão, sua esperança e sua função na experiência religiosa.
Por essa razão, ao falar do ciclo de Abraão, é preciso que se faça uma pergunta: estamos diante de uma realidade histórica ou pré-histórica? Supondo-se que se entenda por história as etapas e culturas da humanidade cuja documentação literária ou arqueológica possuímos, a época de Abraão dispõe hoje de dados literários e arqueológicos abundantes. Precisamente as descobertas arqueológicas permitem ampliar incessantemente os limites do que denominamos história e, desse modo, Abraão estaria situado próximo à linha de separação entre história e pré-história inserido, porém, na primeira. De fato, os nomes de pessoas, lugares e cidades que aparecem são encontrados também nas tabuletas de argila que têm aparecido nos sítios arqueológicos de Mari, Ebla etc. e que em número superior às 20 mil redigidas em várias línguas de tronco comum semita testificam-nos os nomes de Abraão, de Sara e também costumes que refletem com muita semelhança o modo como o faz o Gênesis.
Assim, se entendemos por história tudo o que acontece a partir de um momento fundamental que confere unidade e coerência aos avatares (espírito) de um grupo humano, nesse caso Abraão faz parte da pré-história de seu povo, uma vez que se entende esse povo constituído como tal no evento do Êxodo e Abraão é, efetivamente, anterior ao século XIII. Abraão é então uma figura mítica ou real? A questão não é tão radicalmente clara, pois observamos continuamente que figuras de nossa história são continuamente transformadas pela literatura em meios para expressar uma mensagem ou uma concepção sobre a vida ou alguma realidade humana. Existem personagens que fazem parte do mito ao mesmo tempo em que, sem haver existido, são ficção para falar-nos de nossa própria realidade. Dom Quixote não existiu e, não obstante, em todos nós ocorre a realidade idealista que reflete o Quixote, em oposição à materialista encarnada em seu escudeiro. Igualmente, temos conhecimento de pessoas que existiram e construímos sobre elas toda uma ficção literária, utilizando-as para transmitir um sentido do que entendemos sobre a vida. O fato de ser a novela histórica um fenômeno tão atual entre nós conserva exatamente esta que foi uma constante no decurso da história literária da humanidade: servir-se de personagens significativas para
enfatizar muito mais o significado da veracidade histórica. É o mesmo que ocorre no cinema e na pintura. O pintor tenciona transmitir não tanto o que seus olhos físicos veem, mas os traços da personalidade de um personagem e as características do que constituía a preocupação do viver em sua época.
Seja como for, o ciclo de Abraão forma um complexo literário que separa a história da humanidade da história de um povo, razão pela qual o colocaríamos na pré-história. Sua vida adquire sentido à medida que, vivendo os dramas e as alegrias de todo povo e de todo ser humano, é portador de esperança para toda a história da humanidade. O que temos, pois, diante de nós? Talvez uma leitura exemplar e idealizada de um antepassado. É possível que a história de Abraão a nós transmitida, tal como fazemos nós e todos os povos, não seja mais que uma projeção idealizada sobre um personagem do qual, por ser nosso, antepassado, queremos salientar uma série de qualidades. Pode ser também a síntese da própria história do povo. Um povo ao qual também coube deslocar-se para preservar sua fé, sua identidade; e para ser portador de algumas promessas na história da humanidade. A história de Abraão pode ser também a expressão da história pessoal de todo ser humano, que nos cabe carregar com a inquietante tarefa de encontrar nosso "lugar", que nos toca suportar com a missão de buscar nosso próprio futuro, no decurso da qual devemos superar muitos obstáculos, muitas dificuldades, muitos desânimos, esperando ou perdendo a esperança da realização plena de nossas aspirações mais profundas. Tudo isso é o que temos diante de nós.

2. A pessoa
Afinal, quem era Abraão? A pergunta concreta leva-nos ao encontro com a pessoa. É-nos informado que era filho de Térah, originário de Ur dos caldeus, de onde tem de sair para dirigir-se a Harrã, em direção a Canaã, com toda a sua família. Terá de voltar a deixar Harrã para aproximar-se mais de Canaã. Uma coisa está clara: ao falar-nos de Abraão, a Bíblia começa com o fato de uma saída e com o fato de uma experiência religiosa: "O Senhor disse a Abraão: 'Parte da tua terra, da tua família e da casa de teus pais..."' (Gn 12,1). Eis aqui uma constante em sua vida: sair, caminhar. Em poucos versículos, nossa mente fica repleta de referências de lugares para onde deve dirigir-se: Ur, Harrã, Canaã, Moré, Betel, Négueb, Egito, retornando a quase todos eles e percorrendo-os à larga e em toda a amplitude. A impressão que causa de modo imediato é a de que nos encontramos diante de alguém cuja vida é caminhar.
Muito embora seu caminhar esteja sempre unido à experiência religiosa toda especial como a de manter uma relação pessoal com um Deus único que o tira constantemente das casas de seu xadrez. Sente nostalgia de uma terra que lhe foi prometida, e em todas quantas percorre encontra-se sempre como estrangeiro. Dramática, e ao mesmo tempo irônica, é a narração da morte de sua esposa, a quem quer dar sepultura em um pedaço de sua propriedade e tem de pedir o favor aos proprietários hetitas para que lhe permitam adquirir o direito de propriedade sobre um túmulo. Esse Deus que o faz caminhar e lhe promete uma terra promete-lhe também um filho. Entretanto, não chegam a ele nem terra nem filho. E tem de continuar sempre esperando. É-lhe anunciado um filho, envelhece e não o tem. Finalmente chega um, mas não é o herdeiro e tem de continuar esperando.

3. A questão do monoteísmo
Essa conexão de experiência religiosa com um único Deus em meio a culturas politeístas fez surgir uma questão: com Abraão, a história religiosa da humanidade experimenta um salto qualitativo em um duplo movimento. A questão do monoteísmo: como chega Abraão ao monoteísmo em meio a culturas politeístas? Sabemos que o politeísmo era uma forma acomodatícia, um sentido que justificava formas de vida e de poder. Ele, no entanto, passa para um monoteísmo transcendente, porém ao mesmo tempo histórico, no qual reconhece a Deus como o único Senhor do mundo e da história.
Continuará a conviver com as formas religiosas politeístas cujas práticas ele aceitará nos demais e diante de quem, às vezes, terá de esconder sua própria concepção. Existe um texto muito antigo, o Apocalipse de Abraão, texto apócrifo de origem judaica que, todavia, em sua versão atual revela alguma influência cristã e também gnóstica, que nos dá uma chave para a compreensão do problema. Térah, pai de Abraão, é construtor de imagens, escultor, e dedica-se a esculpir imagens de deuses, estatuetas que logo vende para satisfação da religiosidade popular. Abraão ajuda-o na comercialização e em suas andanças comerciais percebe que essas estatuetas lhe caem e quebram-se ou o fogo noturno do lume toma-as e as consome.
Devido a essas experiências, cai em profunda crise religiosa: "Estas imagens produzidas por meu pai não podem ser realmente deuses se os elementos as destroem com tanta facilidade". Que valor têm, pois, esses deuses? Como podem ser deuses? A crise em que se vê imerso é enfrentada em seu ambiente e,
em virtude do caráter nacionalista daquela religiosidade, vê-se obrigado a sair, fugindo de seu próprio mundo. A partir dessa perspectiva, encontrar-nos-íamos com um Abraão surpreendente, um homem inquieto, profunda e sinceramente religioso, que busca a Deus e se esforça por purificar sua fé. Esse homem que busca a Deus encontra-se com um Deus que o chama. Deus sai ao encontro do homem que o busca. Partindo desse esquema bíblico, revelação de Deus e vocação humana estão profundamente ligados, são interdependentes.
Chamado e resposta formam um conjunto inseparável e intercambiável, porque quem chama a Deus encontra-se com sua resposta, e Deus, por sua vez, chama também a partir das inquietações e aspirações mais profundas do ser humano.

4. A vida como caminho
A partir desse encontro com Deus, a vida de Abraão, assim como a de todos nós, passa a ser aventura sem limites, um caminhar incessante para a maturidade, para a plenitude, em uma sucessão ininterrupta de etapas que conduzem a metas mais altas ou profundas, em cujo fundo, porém, sempre presente e por vezes oculto, aparece um Deus que acompanha constantemente o homem e que é a força fundamental de sua esperança e de seu caminhar. Foi acaso sua evolução religiosa para o monoteísmo a faísca que provocou a ruptura com o politeísmo ambiental e que o obrigou a abandonar seu ambiente a fim de evitar a hostilidade de seus compatriotas, uma vez que foi a maneira de construir e manter sua identidade humana e religiosa? Abraão necessitava desde logo um novo lugar onde expressar sua identidade e onde pudesse viver com fidelidade suas próprias convicções, mas também Deus necessitava de um agente que constituísse um novo elo no processo de dar-se a conhecer de maneira pausada porém progressiva e pedagogicamente à humanidade.
Outra experiência crucial na história religiosa da humanidade é constituída pela questão dos sacrifícios humanos (Gn 22), sempre presente até épocas bastante recentes (sabemos que as culturas pré-colombianas mantinham esse costume). Não é preciso ir muito longe, já que algumas formas religiosas de fanatismo exigem atualmente sacrifícios humanos. E os meios de comunicação encarregam-se de fazer chegar a nós imagens dramáticas de ritos desse tipo. De qualquer maneira, era um costume muito difundido nas culturas antigas, atestado também entre os cananeus. A Bíblia nos apresenta o sacrifício de Isaac como uma prova. Em uma narração magistral, o autor previne os leitores: "Ora, depois destes acontecimentos, Deus pôs Abraão à prova e lhe disse: 'Abraão'; ele respondeu: 'Eis-me aqui'. Ele prosseguiu: 'Toma o teu filho, o teu único, Isaac, que amas. Parte para a terra de Moriá e lá o oferecerás em holocausto sobre uma das montanhas que eu te indicar"'.
É o filho, a esperança, o futuro. Nesse sentido, a Bíblia nos acautela. Não se trata de repetir um sacrifício. Não se trata de que este Deus exija sacrifícios humanos. Efetivamente, porém, reporta-se a tradições antigas nas quais aconteciam tais sacrifícios e nas quais, em dado momento, uma nova experiência religiosa entendeu que era necessário erradicar esse costume. Alguns pretenderam estabelecer um paralelismo entre Isaac e Jesus. Eu diria melhor referindo-me a ambos como dois momentos muito importantes no processo de dar-se a conhecer Deus à humanidade. Em Isaac, supera-se o sacrifício humano, substituindo-o pela vítima animal. No NT, não é um sacrifício de animais. É a oferta livre e consciente que alguém pode fazer de sua própria vida pelos outros. São o trabalho e o esforço cotidiano por fazer uma terra nova e por testemunhar o Deus de Jesus, um Deus extraordinariamente humano.

5. A mensagem de esperança
Depois disso, entramos na questão da mensagem. Sobre um fundo histórico ou com base em algumas narrativas que têm um fundo histórico, embora não saibamos até que ponto o sejam, esconde-se, como em toda a Bíblia um processo de reflexão elaborado ao longo de muito tempo. Trata-se de processos que constituem sempre meios para transmitir-nos a visão e a concepção sobre a vida, a nós que, no entanto, estamos inseridos nela e, passando por ela em etapas sucessivas, indagamo-nos constantemente: o que é a vida, ou o que é a história? Qual o sentido de todo esse acontecer que vivemos? Onde encontrar um sentido para a vida e como pô-lo em prática? Há lugar para a esperança? Centraliza-se exatamente aqui a mensagem de Abraão.
Abraão é o personagem da promessa. Guarda como fundamento de sua vida o fato de ser portador de uma promessa para a humanidade e, nesse sentido, é o personagem da esperança. Esperança que se manifesta em um duplo aspecto: um filho que é o futuro, e uma terra na qual realizar essa grande promessa, onde viver. Duvida e encontra-se continuamente em meio a sua vida na nudez da solidão, longe de sua terra, de sua cultura e de sua família. Além disso, tem de renovar sua própria imagem de Deus, o sentido da promessa que espera. Sempre em um processo de renovação contínua, mas sempre em um processo de espera. Sua espera não é a que brota do desespero, mas a espera paciente e vagarosa. Esperar, segundo ele, é como amar ou criar, é como semear. Sempre como quem, em meio a tudo, encontra uma rocha na qual se apoiar. E essa rocha é sempre a convicção da companhia de Deus.
É espera da esperança, contraditória em relação à desesperança. E também a espera da fé, oposta ao sentido da incredulidade, da desconfiança, do cinismo. É a espera da utilidade oposta ao sentido da prepotência e do medo. Não é a espera tranquila, mas sim a da tensão da luta, do esforço, do caminhar incessante, contraditória em relação ao tédio ou à abundância. A esperança de Abraão é a espera confiante de que o ser pode transformar-se em um ser pleno. É a esperança de crescer, de renovar-se, de construir-se por etapas, de viver a história como um caminho rumo a uma meta. Todos nós podemos esperar do mesmo modo que, como ele, passamos momentos de desânimo, de solidão; momentos nos quais experimentamos a nudez que dissipa nossas ilusões, mas que permite também abrir-nos ao futuro que nos pode vir de Deus.
Abraão é também a memória. A Bíblia faz memória de uma pessoa que se converteu em personagem para renovar, acima do sentido histórico de veracidade, em nosso hoje sempre problemático, um sentido de esperança, abrir nosso presente tantas vezes sem alento, para um amanhã, para um futuro, para uma perspectiva melhor. A partir de Deus, abertos para Deus, permanece sua mensagem, sempre existe o futuro. O que será de nós? Perguntamo-nos muitas vezes. O que será de nosso mundo? Perguntam-se muitos de nossos contemporâneos, abarrotados na abundância de nossas sociedades de bem-estar. A pergunta pode ser, pois, uma expressão de angústia ou um anúncio de futuro, de um amanhã melhor e de um mundo mais humano. Para Abraão, todos temos futuro em Deus. Deus é o sentido, a esperança e o futuro da humanidade.

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